"[...] Quadros sobre a queda e demolição da Bastilha invariavelmente a mostram mais alta do que de fato era. A maior torre não ultrapassava uns 22 metros , porém Hubert Robert , especialista em grandiosidade de ruínas , conferiu-lhe dimensões babilônicas . Em seus quadros , essas paredes tornam-se escarpas gigantescas que só podiam ser conquistadas pela coragem e pela vontade sobre-humanas do povo. [...] Por certo a Bastilha de sua pintura , com pequeninas figuras escalando as muralhas , sugere um imenso castelo gótico de escuridão e isolamento , um lugar onde homens desapareciam sem qualquer aviso e nunca voltavam a ver a luz do dia- até que os escavadores revolucionários desenterraram seus ossos. Essa era a lenda da Bastilha . Sua realidade era bem mais prosaica. [...] Para a maioria dos prisioneiros, as condições não eram tão ruins como em outras prisões [...]. (Quanto a isso, comparada com o que as tiranias do século XX inventaram , a Bastilha era um paraíso.) [...] A maioria dos prisioneiros ocupavam celas octogonais , com cerca de cinco metros de diâmetro [...] . Na época de Luís XVI, cada um tinha uma cama com cortinado de sarja verde , uma ou duas mesas e várias cadeiras. Todos tinham um fogão ou estufa , e em muitas celas podiam chegar à janela de barras triplas subindo uma escadinha de três degraus junto à parede. Muitos podiam levar seus pertences e também cães e gatos para acabar com ratos e insetos. [...] A comida - coisa crucial na vida dos prisioneiros - também variava de acordo com a condição social . [...] O escritor Marmontel babava ao lembrar 'uma sopa excelente, um suculento bife, uma coxa de frango pingando gordura [uma virtude no século XVIII], um pratinho de alcachofras fritas e marinadas ou de espinafre , deliciosas peras de Cressane , uvas frescas , uma garrafa de velho borgonha e o melhor café". Ninguém queria ir para a Bastilha. Porém , uma vez lá dentro , a vida dos privilegiados podia se tornar mais suportável . Permitiam-se álcool e tabaco e na época de Luís XVI introduziram-se jogos de cartas para detentos que partilhassem a cela e uma mesa de bilhar para uns nobres bretões que a requisitaram. Alguns hóspedes literatos até viam um certo encanto na Bastilha , pois ali se estabeleciam seus credenciais de opositores do despotismo. [...] Se não existisse , pode-se dizer , seria preciso inventá-la . E sob certos aspectos ela foi reinventada por uma série de escritos de prisioneiros que realmente sofreram dentro de suas paredes , mas cujos relatos transcendem sua verdadeira experiência na prisão. Estes eram tão vividos e assustadores que conseguiram criar ferrenha oposição na qual se apoiavam os críticos do regime. [...] A crítica era tão poderosa que quando a fortaleza foi tomada a decepcionante realidade da libertação de apenas sete prisioneiros (dois lunáticos, quadro falsários e uma aristocrata delinquente) se viu excluída das expectativas míticas."
-SCHAMA, Simon. Cidadãos. São Paulo : 1989.
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